I'm Winston Wolfe. I solve problems.

segunda-feira, agosto 06, 2007

Memórias do Cárcere



    Na Inglaterra do século XIX Oscar Wilde dizia que a melhor literatura é aquela feita por quem não depende dela para viver. Do outro lado do mundo, nos EUA pós-depressão, Charles Bukowski escrevia para não morrer diante do quadro de fracasso social, financeiro e sentimental que estava inserido. E na explosão do Flower Power, enquanto hippies norte-americanos se congratulavam com roqueiros ingleses, Edward Bunker datilografava a fúria angustiante e mortal das prisões de segurança máxima que aprendeu a chamar de lar desde o final da adolescência. "Fábrica de Animais", segundo romance do escritor e obra que finaliza o pacote de lançamentos promovido pela Editora Barracuda, chega agora às livrarias.
    Diferente do que propunha o dândi irlandês autor de "O Retrato de Dorian Gray", Bunker dependia da literatura para sobreviver mais do que dos punhos. E embora tenha feito uso destes sem hesitar durante seus quase 20 anos de encarceramento, foram as letras que o ajudaram a suportar a degradação física, moral e psicológica que normalmente recai sobre a maior parte daqueles que experimentam a vida por detrás das grades. Por isso, guarda mais semelhanças com o velho boêmio de "Barfly". Bunker, assim como Bukowski, só escreveu sobre aquilo que viveu (ou vivia enquanto escrevia).
    Os mais insensíveis podem achá-lo repetitivo, como um - perdoem o trocadilho - hamster rodando dentro de uma gaiola. É o mesmo tipo de crítica feita, guardadas as devidas proporções, aos Ramones. Mas tanto o grupo da sombria Nova York quanto o presidiário-escritor da ensolarada Califórina são cronistas de seu tempo - repórteres de um tempo ruim, simplificaria Plínio Marcos. Em suas linhas encontram-se verdades inestimáveis para compreender um mundo que só vem a tona nas manchetes de jornais sensacionalistas. Um mundo que grita por atenção. E Bunker foi um dos que gritou mais alto.
    Na mesma linha de "Nem os Mais Ferozes", "Cão Come Cão" e "O Menino", "Fábrica de Animais" transcreve o que Martin Scorsese convencionou no seu cinema "testosteronizado" como algo "olha o que acontece quando se coloca um monte de homem junto". E como em "O Ateneu", de Raul Pompéia, a figura do mestre, do tutor que estende a mão aparentemente sem segundas intenções, da experiência em forma de rugas e cicatrizes, é a força motriz do início da jornada do herói campbelliano de Bunker.
    No universo inconstante e incoerente da prisão de segurança máxima de San Quentin, o jovem Ron Decker vê seu mundo descascar e ganhar cores ocre e sinceras como as da solitária que freqüenta. "Leva de um a dois anos para que a singularidade da prisão se desgaste de modo que sua realidade horrível possa se infiltrar", narra Bunker. Refletindo sobre o inevitabilidade da nova situação de seu personagem, que tenta se adaptar as novas regras da clausura enquanto equilibra-se sobre corda bamba das leis dos animais de dentro e de fora das celas, ele é direto. "O homem que deseja prevalecer onde quer que esteja, incluindo a prisão, corre perigo".
    A nova vida de Decker só não é pior por conta de Earl Copen, detento que cumpre pena a tanto tempo que praticamente se tornou parte do corpo de funcionários do presídio. Mas ao contrário de um Obi-wan Kenobi, a velha raposa não espera fazer de seu discípulo um mestre como ele. Percebe que, embora pela pouca idade Decker já tenha uma ficha criminal considerável, ainda há chance de devolvê-lo para a sociedade dignamente. Para tanto, arrisca suas próprias chances de liberdade engendrando um audacioso plano de fuga.
    Dependendo do ponto de vista, "Fábrica de Animais" poderia ser uma história de amor, como Copen explica a Decker: "Há algum tipo de homossexualidade envolvida, psicológica se não física... se quiser chamar assim. É a necessidade de sentimento - de sentir - que pode ser dirigida a uma mulher". Mas o foco é outro. A relação da dupla é paterna do começo ao fim, sem espaço para terceira intenções. Apenas dois perdidos numa vida suja. Homens querendo se encontrar num mundo criado por outros homens com regras feitas por terceiros.
    Ainda a exemplo de seus outros romances, o texto de Bunker poderia deslizar melhor para dentro da cabeça se fosse menos.... barroco. O escritor por vezes divaga descrevendo recônditos da prisão que só acrescentarão algo mais para quem já esteve lá - ou irá um dia. Uma simples indicação de lugar seria suficiente. É o que talvez o diferencie de Bukowski e aproxime de Wilde. Mas entre um e outro, é com os Ramones que Bunker fica. Para o bem e para o mal.

2 comentários:

Nuvens de Palavras disse...

Bravo! Bravo! Sem palavras para essa matéria. Cada vez fica mais difícil te alcançar.(Flores caindo sob a mesa da redação - espero que o monitor ainda não esteja apoiado com revistas).

Fábio Shiraga disse...

Ainda não conheço Bunker, cara. Gostei do paralelo que traçou entre os escritores e principalmente entre Bunker e a banda do Dee Dee. A Karina é uma amiga que já me falou de Bunker, e coincidentemente hoje ela falou de Barfly do velho safado. Só que ela falou do filme, que ganhou recentemente e me prometeu uma cópia. ;-)

Abraço.